Diz Guimarães Rosa, com sabedoria, que “contar é muito dificultoso, não pelos anos que já se passaram, mas pela astúcia que têm certas coisas passadas”, pois há sempre o risco de deixar a memória não apenas rever, mas transver, por estar inundada pelas sensações e experiências recordadas. É o que ocorre com qualquer um que se atreva a reconstruir, com os fragmentos de suas lembranças, os acontecimentos das décadas de 60 e 70 do século passado, período singularmente marcado por movimentos sociais de rebelião e iconoclastia.
A juventude estava ávida por transformações: nos costumes, na política, nas relações sociais. Surgem, então, movimentos culturais com o objetivo de reformar profundamente todos os campos das artes. Dentre eles, o mais conhecido talvez seja o movimento underground (udigrudi, como preferia o cineasta Glauber Rocha) ou a contracultura, que nasceu com o Power Flower, Black Power, Gay Power, Women’Lib, e acabou desembarcando no Rio de Janeiro e se deparando com a oposição violenta e ferrenha da ditadura militar.
Tratava-se, em suma, de transformar e superar todos os valores considerados convencionais ou caretas, relacionados à geração anterior, a geração pratrasex. E, é claro, a geração prafrentex, que “amava não só os Beatles e os Rolling Stones” mas também Joan Baez, Jimi Hendrix, Janes Joplin, Mercedes Sosa, Vinicius-Toquinho, Taiguara, Aldir Blanc-João Bosco, Sá-Rodrix-Guarabyra, Clube da Esquina-Milton Nascimento, Secos e Molhados, Chico Buarque, os baianos e os Novos Baianos e ainda Belchior,“o rapaz latino-americano vindo do interior”, só poderia mesmo despontar e proclamar seu grito de rebeldia nas areias do mar de Ipanema. De fato, não poderia ser em outro lugar, pois era ali, do Barril 1800 e do Castelinho – bares onde se tomava, depois da praia, “um chope prá distrair”, ouvindo esta bela canção de Paulo Diniz, – até a rua Aníbal de Mendonça, passando, evidentemente, pela rua Montenegro (atualmente, rua Vinicius de Moraes), que se marcavam as fronteiras do mundo maravilhoso desses jovens.
Fica difícil explicar como, em condições políticas tão adversas, com os órgãos de repressão perseguindo, intimidando, torturando e matando, foi possível o aparecimento de movimentos culturais de tal ordem fecundos que suas marcas ainda hoje se fazem sentir. É justamente nessa época que se impõe uma nova linguagem cinematográfica (Cinema Novo), musical (música de protesto) e teatral (estética da agressão).
A imprensa não poderia deixar de sentir os efeitos desse clima cultural em rápida transformação. Cumpria, por conseguinte, criar um jornal que servisse à veiculação das novas ideias. O terreno já estava pronto para o aparecimento da chamada imprensa alternativa ou imprensa nanica cuja consolidação se deve ao jornal O Pasquim, ou Pasca, como, com carinho, os jovens da geração prafrentex costumavam chamar seu porta-voz.
O Pasquim acabou por exercer poderosa influência sobre um vasto público, de tal modo que criou uma legião de fieis escudeiros, que se autodenominavam pasquimaníacos e que adotavam o modus vivendi propugnado pelo jornal. É incontestável a influência do jornal sobre a juventude da época, de tal sorte que conseguia formar opiniões, propagar mudanças e, como dizia o Capitão Ipanema – uma das personagens do jornal –, “subverter as estruturas”. Sua aceitação entre os jovens deveu-se, principalmente, ao seu local de nascimento, a cidade do Rio de Janeiro, e à sua consagração pelo mar de Ipanema.
Só aquela garotada queimada com a ajuda dos bronzeadores de beterraba e cenoura vendidos na praia, talvez fosse melhor dizer estorricada pelo sol do verão – câncer de pele só podia ser invencionice dos invejosos yankees, go home– curtido, naturalmente, no mar de Ipanema, poderia servir de inspiração para um jornal tão criativo. Seu poder de criticar os padrões da época, empregando a dolorosa (ao menos para aqueles que eram vítimas de suas piadas e de suas charges) arma do humor, tinha um sabor especial para a juventude. Nada sabia melhor a um legítimo carioca frequentador da praia de Ipanema que a gargalhada catártica, descontraída e transgressora, sobretudo naquele período sombrio de terror pânico permanente, instaurado pelos governos militares. O riso funcionava como um instrumento de liberação e, simultaneamente, de superação do medo e de combate ao poder dominante. E riso, não importa se irônico, sarcástico ou zombeteiro, é sempre o que se espera de quem mora no Rio, cidade que, já no próprio nome, indica a vocação para a alegria.
Além do humor, O Pasquim empregava as expressões e as gírias utilizadas na linguagem cotidiana dos jovens cariocas (pão, plá, paquera, putz, bicho, grilo, desbunde, coroa, dica, cara, prafrentex, pratrasex, viagem, quadrado, tirar onda, qualé a tua, tô na minha, nem vem que não tem). E mais, introduziu o palavrão, ou melhor, o palanovrão - como proclamou Ziraldo, um dos membros da divertida troupe, em uma das páginas de um exemplar de 1970 –– na linguagem jornalística, usando, como estratégia para marcar sua contestadora presença, um singelo asterisco.
Não se podia mesmo acreditar ou confiar “em ninguém com mais de 30 anos”, como alertavam, em uma de suas composições musicais, os irmãos ipanemenses, Marcos e Paulo Sérgio Valle. Assim, a geração pratrasex manifestava sua indignação contra os jornalistas d’O Pasquim e contra seus jovens leitores com uma fieira de elogios: cabeludos, subversivos, comunistas que passam a vida na praia “tomando” (os coroas falavam assim) maconha, enquanto a geração prafrentex vibrava com esse instrumento de rebeldia. Pero sin perder la ternura jamás, como advertia, guevarianamente, o Che, em suas andanças, na luta contra o dragão da maldade do capetalismo, invenção do capeta, como bradava outro santo guerreiro dos anos 60/70, o Profeta Gentileza, que bem poderia ter inspirado os filmes de Glauber Rocha.
Também nesse mesmo período, surge um grande evento popular, a Banda de Ipanema, cujo estrondoso sucesso surpreendeu até seus próprios inspiradores: a patota d’ O Pasquim. A Banda de Ipanema espalhava sua alegria pelas ruas do bairro e seus integrantes só saíam do ruidoso cortejo para dar uma refrescada no marzão colorido de azul. Tendo sempre à frente sua musa transgressora, a atriz Leila Diniz (pois não é que a “mocinha de família” teve a ousadia de expor sua barriga de grávida na praia de Ipanema, mostrando, de maneira acintosa, que mulher fazia – e, pior, gostava de - sexo!!), constituiu, do mesmo modo que o jornal, um pequeno espaço no qual o silêncio e as interdições estavam temporariamente suspensos. Era o lugar propício a liberar as emoções reprimidas, a ridicularizar o poder e seus representantes, a exprimir, ainda que de forma desordenada e vaga, a esperança da mudança, do devir, do Novo.
José Saramago – cuja obra ficou conhecida entre nós graças a Millôr Fernandes, um dos colaboradores d’O Pasquim e inventor do frescobol - disse certa vez que a grande divisão entre as pessoas está entre as que dizem sim e as que dizem não. O Pasquim e os outros jornais da imprensa alternativa que lhe seguiram os passos foram os únicos veículos da imprensa que, no período de violência em que apareceram, souberam dizer NÃO: não à ditadura militar, não ao autoritarismo de qualquer espécie, não ao poder do dinheiro, não ao excesso de formalismo, não, enfim, ao mau humor, algo definitivamente intolerável para quem vive cercado pelo mar. Por estarem entre os que, corajosamente, disseram não, em momento tão tenebroso da história de nosso país, merecem nossa gratidão, expressa nas palavras do escritor português: “abençoados os que dizem NÃO, porque deles será o reino da Terra”. E do Mar. Do Mar de Ipanema.
Autora: Terezinha Bittencourt* - Professora de Linguística da UFF
• Este artigo foi publicado oridinalmente no catálogo da exposição Quando o Mar virou Rio, produzida pela M'Baraká em 2017 e que inspirou o roteiro e o nome do nosso primeiro Rolé na Rede. Você pode acessar o catálogo da exposição aqui