A história do Morro da Serrinha, com mais de 100 anos, é a própria história da cidade e do povo negro da cidade do Rio de Janeiro. Junto com Mangueira, Estácio, Salgueiro e Providência, a Serrinha é uma das cinco primeiras favelas do Rio, Por ter sido construída no ponto final do bonde, em Madureira, fora da disputa imobiliária do centro do Rio, onde as demais sofreram processos de remoção, é um verdadeiro quilombo cultural a céu aberto, onde o jongo foi preservado. Hoje é o mais forte território jongueiro da cidade do Rio.
O jongo veio das senzalas, das plantações do Vale do Café do Sudeste. É um dos patrimônios imateriais da Serrinha, assim como a umbanda, o partido alto, o samba de raiz, as festas populares de São Jorge e São Cosme e Damião. Na Serrinha, o jongo tem a característica de ser urbano, estar conectado à cidade e ao poder, porque o Rio foi capital do Brasil durante décadas da República. O Ministro Edgar Romero, que hoje dá nome a uma grande avenida em Madureira, foi um dos políticos influentes com quem os jongueiros, em sua maioria estivadores do Cais do Porto, criam relações. Esses grupos agiram para erguer a comunidade. Com o salário desses chefes de família e através de caixas coletivos, uma espécie de dízimo social, conseguiram abrir ruas, construir poços de água. Além disso, foram os jongueiros, partideiros, sindicalistas que fundaram o Império Serrano.
Mestre Darcy foi o artista que levou o jongo para fora da Serrinha, para o mundo, e tinha o suporte de um grande matriarcado. A mãe de Darcy era vovó Maria Joana, a líder espiritual da Serrinha, mãe de santo, parteira, acolhedora. O terreiro era onde acontecia toda as redes de relações.Genial e visionário, Mestre Darcy foi contra teóricos mais puristas que diziam que a cultura popular não poderia ser alterada na sua forma. Colocar outros instrumentos como violão, cavaquinho, piano, violino, guitarra, fazer show, colocar criança pra dançar, seria uma distorção. Darcy bancou essas mudanças e criou o grupo cultural Jongo da Serrinha.
Nos anos 90, Darcy passa o bastão para Tia Maria, sua comadre, que assume o trabalho social de enraizamento do jongo na Serrinha, com crianças, através da escolinha, e o trabalho dos palcos. É nesse momento que o jongo, como instituição, passa ser predominantemente feminino, organizado e gerido por mulheres. A liderança feminina de Tia Maria foi a mais perfeita síntese do jongo, até por se tratar de uma mulher, mais velha, que representou a sabedoria do jongo e viveu até os 98 anos na Serrinha. Outra figura forte e representativa foi Luiza Marmello, a primeira mulher a tocar tambor no grupo, falecida em 2019. E a professora que traduziu a dança e o jogo corporal do jongo e criou a cartilha oral para transmissão desse conhecimento ancestral, Lazir Sinval.
O jongo não se resume a um ritmo musical, a uma partitura de dança, não é apenas uma organização espacial, coreográfica. Tem uma dimensão simbólica e espiritual grande. É uma vivência, um complexo cultural, de respeito à natureza, da oralidade e da valorização dos mais velhos. Então, apesar de existir um método de ensino com técnicas, não está descolado do seu contexto e de suas relações. Diferente do samba, que existe sem a roda, o jongo não existe sem a roda do jongo. O jongo é relacional: precisa estar inserido numa comunidade jongueira, da rotina da casa, do velho e da criança, do comemorar, do comer, do brigar e fazer as pazes. Essas relações fazem parte do jongo tanto quanto a música e a dança, os figurinos e a louvação aos ancestrais. Para aprender o jongo, é necessário conviver, uma escola da vida, de formação que pode levar até 10 anos.
Tivemos muitas sedes na Serrinha até que, em novembro de 2015, inauguramos a Casa do Jongo, onde antes existia um edifício abandonado há 30 anos. A nova sede potencializou não só os trabalhos do jongo, como também de outros grupos formados na região e que não tinham espaço. Hoje temos um espaço arquitetônico pensado para o jongo, um centro de memória, uma escola e o centro cultural onde acontecem espetáculos, sessões de cinema e teatro, circo, dança, roda de jongo e de samba. Então é uma gestão compartilhada, como uma incubadora. Na Casa temos um pequeno centro de memória, que é o coração do espaço, ali está todo o fundamento do jongo. A exposição permanente exibe fotografias que recebemos de famílias da Serrinha, um espaço em homenagem ao Mestre Darcy, vovó Maria Joana e Tia Maria do Jongo. A entrada da Casa, uma “cozinha sala”, é para que as pessoas se sintam na casa de uma avó, de um parente seu. Um lugar para bater papo, trocar ideia, tirar foto, tomar um café, experimentar um pouco dessa vivência ancestral.
Artista plástica e mestre em Projetos Sociais e Bens Culturais, Dyonne Boy é coordenadora do Jongo da Serrinha, casa de cultura e preservação da memória afro-brasileira.