A prática de colecionar do Museu Histórico Nacional, desenvolvida ao longo do tempo, tem uma consistência muito grande e pouco comum. Para quem estuda coleções históricas, como eu, é admirável ver o resultado desse trabalho de quase 110 anos a essa altura. Cada geração enriqueceu a coleção anterior, numa continuidade criativa. O MHN tem ainda que percorrer um caminho para valorizar a riqueza de seu acervo extraordinário que não cabe na moldura da história nacional. Não só pela quantidade de peças, mas também pela qualidade do acervo, que permite tratar o conjunto a partir de muitos pontos de vista. A expansão futura da instituição certamente vai dar a dimensão dessa diversidade de histórias contidas no seu acervo. A história do Brasil é grandiosa, e um museu de história do Brasil não poderia ser menos grandioso.
Narrativas sensíveis na história da nossa sociedade, dos tempos coloniais, da época do Império e da República, estão presentes no MHN. Quando a coleção de numismática foi transferida da Biblioteca Nacional, o museu recebeu livros sobre o tema da Biblioteca Real, de D. João VI, e mais tarde o mobiliário da Biblioteca do Coelho Neto. Hoje encontramos a coleção de livros da família imperial numas das estantes do escritor. A narrativa do encontro de peças encanta. Temos coleções iconográficas e históricas, de manuscritos, postais, fotografias antigas em técnicas como o daguerreótipo, somadas ao conjunto da biblioteca e das coleções museológicas, de numismática, estatuetas de marfim, arte sacra, indumentárias, armaria, mobiliários. Não temos espaço físico para apresentar integralmente todos esses itens ao público. É tanto acervo que seria preciso um investimento que o museu nunca teve. Mas o trabalho técnico feito ao longo do tempo garante que as próximas gerações possam usufruir disso a qualquer momento. O acervo está bem tratado, basta capacidade de investimento para sua difusão. Estamos avançando no processo de digitalização para disponibilizar o acervo online.
Por causa da coleção de estandartes na parte externa, há quem chame o MHN de “Museu das Bandeiras”. Tem gente que chama de “Museu das Carruagens”, ou “Museu dos Canhões”. Costumo dizer que o Museu Histórico Nacional é o “Museu do Design antes de existir o design”. Toda uma era da cultura material no Brasil, antes do desenho industrial, dá para conhecer aqui no acervo do MHN. Objetos extraordinários como os dois tronos do Imperador a itens prosaicos, como cadeiras, espelhos, pratos, copos, uniformes que retratam a vida cotidiana. Entre as pinturas do acervo mais conhecidas do público, estão as telas “Último baile da Ilha Fiscal” e “Combate Naval do Riachuelo”, de Victor Meirelles. Uma peça que tenho carinho especial e é mais conhecida no meio internacional é a tela rasgada de D. Pedro II, retrato que ficava no gabinete do então ministro da Guerra. Quando a República foi proclamada, fizeram um corte no rosto do Imperador. A tela acabou sendo restaurada materialmente, mas o corte foi mantido sem restaurar a pintura, o que gera muito interesse e sobre a qual os visitantes elaboram teorias sobre o ato. A memória do ato iconoclasta foi preservada pelo trabalho técnico.
O MHN carrega a contribuição da inteligência do colecionismo, por ter abrigado uma escola que formou gerações de museólogos. Em 1932, a instituição criou o primeiro curso para conservadores, como eram chamados os museólogos na época, sendo também a primeira faculdade de humanidades da Universidade do Brasil. Abrigou o primeiro laboratório de restauração de arte do país e foi centro de debates, reflexão e prática da educação em museus. Graças a isso, foi sempre um espaço de pesquisa. Os anais do MHN são fruto desse curso, com as pesquisas que eram feitas para a formação de alunos. A faculdade segue em funcionamento na UniRio, sendo que o museu ainda é campus de estágio curricular do curso de museologia, de programas de estágios do Ibram e de iniciação científica. O museu continua sendo uma escola e centro de referência de vários campos de estudo de museus. Recebemos inúmeros pesquisadores interessados não só no arquivo histórico institucional e nas atividades da instituição, como também na documentação de alunos, professores e da didática do antigo curso de museus e nos arquivos da Inspetoria de Monumentos Nacionais, departamento do MHN que existiu antes da criação do Iphan em 1937, e atuou para o tombamento do conjunto histórico de Ouro Preto.
Fatos históricos importantes marcaram o local onde hoje fica o MHN. Na parte sul, havia a Fortaleza de São Tiago, que abrigou o Calabouço e faz parte da história colonial, lugar de punição e da disciplina dos escravos. Na parte norte do museu, aconteceu a história da Sabina, a vendedora de laranjas do Largo da Misericórdia que ficou no meio de uma hostilização de monarquistas e republicanos. Ao ser expulsa do seu ponto, gerou uma revolta que se tornou símbolo da Proclamação da República. Uma luminária atingida naquela época pelas laranjas atiradas está no acervo do MHN. E na frente do museu, já no período Republicano, houve a tentativa de assassinato do então presidente Prudente de Morais, em 5 de novembro de 1897. O presidente escapou ileso, quem morreu foi o ministro da Guerra Marechal Bittencourt, e um busto em sua homenagem está presente na entrada do museu. O incidente levou à repressão do grupo político ao qual o assassino era ligado e acabou determinando a saída do Arsenal de Guerra deste ponto para o Caju.
Para o centenário do MHN, que coincide com a comemoração do bicentenário da Independência, estamos propondo um projeto para contar a "História do Brasil em 102 objetos". Nos moldes da “História do Rio de Janeiro em 45 objetos”, só que desta vez as peças serão exclusivamente da coleção do MHN. A catalogação e informatização das nossas bases de dados é importante para o MHN chegar aos 100 anos renovado e produzirmos este conteúdo de referência. O esforço é tentar identificar por que a história do Brasil levou a esses objetos e em que medida esses objetos participaram ativamente dessa história. Como, por exemplo, as mesas das Constituintes de 1823 e 1891 e a primeira urna eletrônica adotada em 1989. A ideia é misturar tipologias de objetos e, ao mesmo tempo, atravessar o tempo. Os objetos têm uma característica especial porque muitas vezes são transtemporais, como no caso do vaso tupinambá que abria o livro da história do Rio, mas, como era uma peça do Museu Nacional, depois do foi necessária a atualização com um dos fatos mais contemporâneos da história da cidade. Desta forma, a presença indígena no Rio foi apresentada não no início do livro, quando do encontro com os europeus, mas no final, com a discussão da presença contemporânea dos índios na região metropolitana da cidade. Vários objetos atravessam os tempos, não ficam circunscritos a uma época só.
Em geral as pessoas pensam que um museu da história é um museu do passado. Mas na verdade é o contrário, o MHN é um museu do presente pensado a partir da perspectiva histórica. Por isso, convidamos o público a ver o passado para repensar o presente. A pergunta faz toda a diferença. Somos um museu de perguntas, não de respostas. A cada nova pergunta, você pode ver o acervo de outro modo. O projeto Bonde da História, que revisita o acervo a partir de um corte temático, segue essa premissa, atravessando o mesmo espaço com novas questões e narrativas. Dinamiza nossas exposições e abre espaço para o diálogo com temas contemporâneos, como a história da umbanda e da participação feminina, e tem uma versão para as crianças pequenas, o Bondinho da História. Através de uma interrogação, é possível experimentar o mesmo espaço do MHN de outra maneira.
Diretor do Museu Histórico Nacional, Paulo Knauss é professor de Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e conheceu o MHN como estudante nos anos 1980, no momento de renovação da política cultural do Brasil, que daria origem ao Minc. Depois, como pesquisador dedicado à cultura e ao patrimônio material, elaborou diversos estudos pertinentes ao acervo do MHN.